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Lemmy está redivivo: minha vida regada a Motörhead

Por Rodrigo Contrera
Fonte: Rodrigo Contrera
Postado em 05 de julho de 2016

Lemmy, o frontman do Motörhead, falecido no final do ano passado, está vivo em nós. E assim sendo, está redivivo (ressuscitado). Seja em vida, em exemplos, em sua música, em suas histórias, em sua imagem, Lemmy nunca nos abandonará a nós, headbangers e roqueiros de forma geral. Mas sua figura para mim é algo mais do que "apenas" e tão somente isso, um ícone do rock, do metal e comportamental: é um exemplo de vida. Este texto servirá para narrar em que medida o som do Motörhead, em grande medida formatado e disseminado por ele, e seus exemplos de vida e de horror (sim, isso mesmo) fizeram com que eu ainda conseguisse avançar na vida, meio aos trancos e barrancos, curtindo adoidado com meus amigos e amigas roqueiros o que é simplesmente VIVER. Aviso desde já que estou fazendo a adaptação da biografia dele para o teatro, autorizado pelo filho do Lemmy, e logo vocês deverão poder curti-la nos palcos.

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Ace of Spades

Voltemos à década de 80. Eu tinha por volta de 15 anos à época, e de vez em quando era invadido pelos programas da TV que divulgavam rock e música pop. Lembro-me claramente, daquela época, de ter visto o vídeo de Ace of Spades, e não me recordo de ter tido uma ótima impressão daquilo, não. Era pesado demais, eu não entendia por que tanta raiva, a música - como um entrevistado diz no documentário "" - parecia que queria nos matar, passar por cima de nós, nos destruir. E isso era assustador. Lembro-me, porém, do rosto do Lemmy, de seus dentes da frente quebrados, e não me lembro de ter sentido horror. Era feito, claro, assustadoramente feio - como dizem outros entrevistados em outros documentários -, mas eu não sentia medo. Eu me sentia estranho. Aquilo era estranho. Deixava uma impressão que ficava, e era bem isso que ele parecia querer com tanta raiva, tanta força, tanto punch.

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Naquela época, vale dizer, eu gastava parte substancial de minha mesada jogando fliperama, ora em lugares da Barra Funda, em São Paulo, ora numa máquina de Cavaleiro Negro, que ficava num canto de uma lanchonete embaixo do prédio de um amigo meu, com o qual nós atirávamos com espingarda de chumbo nas bundas das pessoas que passavam na rua ou nos ônibus que corriam o bairro tentando atingir o Pacaembu. Eu jogava na máquina a rodo, e sempre me dava mal, mas não fazia a conexão com o Ace of Spades da música do Lemmy, que também adorava passar o tempo nesses jogos inúteis, marcando seus recordes (que eu não conseguia, até porque as fichas acabavam logo), e bebendo Jack Daniel's, depois com Coke. Eu era apenas um garotinho terminando o colegial e vislumbrando uma nova vida na faculdade em que iria passar. Iria me afastar do Motörhead e de sua influência por várias décadas, quase duas inteiras.

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Anos 2000

Eu estava casado, morava no Jabaquara, e íamos, minha esposa e eu, tomar café e comer alguns petiscos em cafeterias do Morumbi. Eu estava insatisfeito com a vida, mas tinha emprego, víamos vídeos, tentávamos curtir a vida do jeito que podíamos, em suma, estávamos trancados em vidas que assumimos que tinham de ser assim, simplesmente.

Um dia, ou uma tarde, eu estava por ali, e parei com o carro numa conveniência ao lado de um McDonald's. Vendo as revistas que estavam por ali, deparei-me com uma, bastante puída, maltratada, que fazia um retrospecto da carreira de uma banda, o Motörhead. Lembro-me de que fiquei bastante tempo olhando a revista, avaliando se a levava, conferindo o conteúdo (não estava lacrada), até que finalmente a levei. Ainda tenho essa revista comigo, e ela realmente foi um achado. Bem escrita, por alguém que realmente gostava da banda, não economizava em elogios ou comentários jocosos, e parecia poder me guiar no universo de algo que poderia eventualmente me fazer retomar a vida ou uma vida de que eu realmente gostasse ou me orgulhasse.

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Não me lembro bem do que me chamou mais a atenção na revista (que aqui, em minha bagunça toda particular, não consigo sequer achar). Mas me lembro de que fiz uma ideia da banda em toda sua carreira, e de que compreendi a imagem do Lemmy nesse contexto. O Cara que optou pelo rock, que gostava de ler sobre armas e guerras, que gostava de mulheres e que tinha traçado mais de mil delas, o cara que optou por um visual e um som agressivo e ao mesmo tempo profundo, sabendo lidar com os altos e baixos de uma banda que não se deixava levar por modismos, o cara que optou por simplesmente viver, e por determinados valores a regir sua vida e carreira. Não irei entrar nesses valores agora, irei simplesmente lhes dizer que passei então a vivenciar o que era Lemmy e o Motörhead com um olhar mais profundo, menos restrito ao som, simplesmente, mas afeito a tentar entender o que aquele cara, afinal, me dizia.

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Esse meu jeito de tentar entender a banda tinha um motivo. Eu estava há mais de dez anos estudando ciências humanas e Filosofia, e por causa disso sentia uma necessidade absurda de me aprofundar nos assuntos que estudava, mas não tinha assuntos que eu podia estudar como queria, e o Motörhead tornou-se um assunto de importância especial em minha vida. Porque eu precisava de vida, eu precisava viver. Preso a minhas condições, sem sentir o que me acontecia, o Motörhead surgia meio que para me dizer, seja, filho da puta, seja algo nesta vida, caralho. Ou seja, o familiar kick my ass, que dominava essa espécie de filosofia de vida que parecia reger a vida do Lemmy, assim como sua obra. Sem babaquice, entrei em sua discografia, e mais, comprei sua biografia, em inglês, na internet, confiando em que somente ele, com suas palavras, poderia me dizer realmente a que veio sua vida, sua banda, e seu percurso.

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Vida

Eu já lhes disse que minha vida estava sendo simplesmente tocada, mas não vivida. Pois foi que aos poucos percebi: o Lemmy conseguiu tudo meio que abrindo espaço com os cotovelos, simplesmente existindo, e sendo. Ou seja, simplesmente fez. Nessa época, eu trabalhava numa empresa e havia me apaixonado (ou algo similar) por outra pessoa. Foi então que aos poucos eu percebi que deveria simplesmente tentar. Não deu certo, mas não houve problema. Eu começava a me envolver com teatro. Pedi para assistir ensaios e comecei no teatro falando um texto meu, a convite, num teatro lotado. Fui e fiz. Mais: comecei a encenar peças minhas em festivais. Como? Simplesmente indo lá e fazendo. Como o Lemmy, que não tinha banda, depois da Hawkwind, e que portanto só lhe restou criar a própria. Ou como ele, que quando garoto queria garotas e percebeu que as guitarras as atraíam. Comprou uma. Ou quando não havia baixista para outra banda, quando ele viu um baixo sobrando na van ao lado, pegou ele e se tornou o baixista da Hawkwind. O Lemmy nasceu para perder, e viveu para ganhar, conforme o lema que ele tornou célebre e universal. Mas não irei contar mais de sua biografia, claro, até porque ela logo irá sair em português (só comprem a autobiografia).

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Claro que não era somente isso o que me atraía na história do Lemmy. Sua risada, por exemplo, remetia-me a uma espécie de humor contagiante mas ao mesmo tempo cru que me dizia que eu talvez não fosse a pessoa que imaginava. Daí que gostava de faixas sempre muito toscas, que ria de assuntos que às outras pessoas (e a minha esposa) causavam calafrios, encarava certas questões com maior crueza e talvez até crueldade, algo que chocava minha mãe, meus familiares e mesmo meus vizinhos, por outro lado tinha compaixão com situações que aos outros pareciam estranhas demais ou fora de seu mundo, e, ainda mais importante no que dizia respeito ao Lemmy, me condoía com pessoas que eu não conheci, não conheceria ou não vislumbraria jamais conhecer - como os mortos na Primeira Guerra Mundial. Por outro lado, a forma que o Lemmy tinha de se aproximar de alguns temas - como a decepção, por exemplo - era muito forte, forte até demais, para pessoas emotivas ou de sentimentos mais sutis, mas era também verdadeira, e por isso conseguia falar diretamente ao coração de pessoas realmente atingidas por porradas no coração. Como na música I Don't Believe a Word, que traduzi em tempo real a uma menina que tinha me magoado, ou Lost in the Ozone, que remetia a dores que eu jamais imaginaria sequer possíveis na teoria, mas que - por surpresa minha - eu já havia vivenciado na prática.

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Aos poucos, claro, eu ia entendendo como foi que se deu REALMENTE a vida do Lemmy (fora do glamour de que já vinha sendo sujeito, após fazer o sucesso que podia e após ter as glórias de um estrelato mundial - afina, em minha época, os shows do Motörhead era bastante lotados e caros), e percebendo as camadas de humanidade aparentemente submersas por pedras e pedras de sofrimento que ele não compartilhava facilmente, por seu sorriso difícil de retirar, por suas risadas que só davam margem a humanidade em meio a pessoas com uma sensibilidade ao menos em parte similar à dele, por sua vida de correr contra o destino, por suas decepções - que ele quase nunca expressava -, por suas fixações - que deveriam dizer respeito a traumas que ele não explicava a ninguém -, por seus amores - que eram muitos, e não estou necessariamente me referindo às mulheres com que transou -, por seus ódios - contra a hipocrisia, contra a religião, contra os políticos, contra a guerra, contra a ignorância, contra os detratores -, e muito, muito e muito mais. Claro que isso ia meio que me influenciando de forma que eu não conseguia prever, e aos poucos eu ia assim me afastando de certas situações, de certas companhias, até de minha esposa, até certo ponto.

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Seria um exagero eu lhes explicar em que medida as músicas do Lemmy realmente formataram boa parte de minha visão de mundo. Um exagero e idiossincrático demais, porque cada um de vocês que está lendo isto gosta do Motörhead por uma razão em especial, de algumas músicas por outras razões, do jeito do Lemmy por razões biográficas que são de vocês mesmo, e que não me dizem respeito, de valores que ele passou por toda sua vida por motivos que só a vocês dizem respeito e que mais importante vocês podem querer guardar somente consigo. Digo-lhes apenas que o Lemmy, em toda sua trajetória, não entrou apenas em minha vida, mas entrou em minha alma de forma tal que só pensadores de renome - fiz Filosofia e Ciência Política - também conseguiram entrar, que só pessoas realmente importantes em minha vida conseguiram, tarefa que só meus familiares - e olha que estou apenas retomando o contato efetivo e sentido com eles - sabem como foi difícil retomar. Pois o Lemmy entrou como que na minha família, e olha que infelizmente não o conheci. Eu posso até brigar fisicamente sobre ele, é foda admitir (e sei que vocês também pensam, ao menos alguns de vocês, dessa forma).

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Separação

Não é um mero acaso que minha separação (há uns 5 anos) ocorreu pouco depois de eu ir a um show do Motörhead (fiquei lá atrás, mas não dei a mínima, e fiquei ao lado de um fã que pareceu meu irmão na hora). Foi como uma despedida, embora logo nos anos a seguir eu conhecesse o filho dele e combinasse a peça sobre a vida dele (que estou adaptando). Vocês podem se perguntar por que não tenho medo de alguém mais experiente me roubar a ideia. Por uma razão muito clara: o Lemmy era íntegro, passou isso ao filho, e o filho não iria me decepcionar. E se o fizer, ora, tal qual Lemmy pensaria, foda-se, o filho não iria dar valor ao legado do Lemmy fazendo isso. E isso, para começo de conversa, não seria problema meu. Eu tenho que cuidar do que é meu.

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Com a separação, eu fiquei realmente na merda. Não sei se porque eu realmente a amava, ou por alguma razão que só a psicologia ou a psiquiatria conseguem explicar. Sei que eu fiquei na merda, e que somente algumas das faixas de alguns dos cds do Motörhead conseguiam me fazer compensar a dor sentida. E mais, foi somente - em parte - graças ao exemplo dele, por quantas passou, que eu também consegui me virar. Comprei alguns cds dele na Alemanha - que são raros nas versões que tenho -, continuei pesquisando e me virando no jornalismo e no teatro.

Falecimento

Mas aí, ano passado, ele morreu. Lamentei, sim, e muito, até porque queria ter tido tempo de poder vê-lo entrando no teatro de cuja companhia em faço parte. Mas não importa. No fundo, não importa. Assisti, sim, as exéquias dele, em cerimônia transmitida online. Assisti o discurso comovido do filho, a pequena fala do Mickey Dee, e assim foi. Uma morte é apenas uma morte. Importa o que ele era em vida, e isso é o que nos interessa, e o que levamos. Depois, claro, aparecem os urubus, os condores, e todos os que dizem coisas para aparecer e para fazerem os egos brilharem. Sei que nenhum de vocês que me lêem dão mais valor a estes do que ao pouco que ele possa ter feito - e muito fez por nós, sem que o soubéssemos. E mais, ele o fez sem a menor empáfia ou vontade de aparecer. Aparecer, ele aparecia como era, e dizia o que via, e dizia que se sua honradez em dizer o que via lhe dava algum mérito, então que fosse. E se não lhe dava, então foda-se. Simples assim. Tenho uma amiga - que é quase um caso, ou um caso, não sei - que sabe que, diante de qualquer problema eu digo, f, foda-se, e é assim. E é.

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Legado

Cada um, hoje, vê o Lemmy e o Motörhead de seu jeito. Tem aqueles que vêem mais o jeito roqueiro como ele conduzia sua vida até o fim. Outros vêem seu estilo musical ou seu som - eu tive um Fender com que reproduzia algo do som do Rickenbaker dele -, outros vêem os temas com que ele se referia ao mundo - que dizem respeito a profundezas que requerem textos bem mais longos que este, pois ele era um leitor atento e um perfeito desentranhador da política atual -, outros vêem seu jeito mulherengo ou respeitoso até o fim da vida, do rock, e da música em geral - cada um vê do jeito que quer e que pode - algumas leituras requerem bastante pesquisa, decerto - pois a própria existência do Sid Vicious no rock deve em parte a ele, e olha que o Sid é punk, não é bem rock, ao menos do jeito que o Lemmy o entendia. Seja como for, Lemmy deixou um legado. E para mim o maior legado que ele deixou foi o de ter vivido de forma sincera, vívida, íntegral e íntegral sem deixar a dever a ninguém, e mais importante, sem deixar-nos perceber que ele o devia. Pois ele sempre fez jus a si mesmo. E deixou-nos o exemplo de tentar-mos fazer algo similar.

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Sobre Rodrigo Contrera

Rodrigo Contrera, 48 anos, separado, é jornalista, estudioso de política, Filosofia, rock e religião, sendo formado em Jornalismo, Filosofia e com pós (sem defesa de tese) em Ciência Política. Nasceu no Chile, viu o golpe de 1973, começou a gostar realmente de rock e de heavy metal com o Iron Maiden, e hoje tem um gosto bastante eclético e mutante. Gosta mais de ouvir do que de falar, mas escreve muito - para se comunicar. A maioria dos seus textos no Whiplash são convites disfarçados para ler as histórias de outros fãs, assim como para ter acesso a viagens internas nesse universo chamado rock. Gosta muito ainda do Iron Maiden, mas suas preferências são o rock instrumental, o Motörhead, e coisas velhas-novas. Tem autorização do filho do Lemmy para "tocar" uma peça com base em sua autobiografia, e está aos poucos levando o projeto adiante.
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