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Lemmy no fundo do poço: ou como alcançar o desespero - e afundar

Por Rodrigo Contrera
Postado em 26 de maio de 2016

Lemmy Kilmister, baixista do Motörhead recentemente falecido, se tornou mundialmente conhecido por tocar e cantar alto, levar a vida de roqueiro inveterado, ter opiniões que sustentava até o fim, mandar muitos à casa do caralho, escrever músicas sobre guerra, mulheres e uma virtual descrença em ídolos e quaisquer formas regradas de vida em sociedade. Em suma, tocava a liberdade.

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Mas um lado "menor" (menos conhecido) de sua obra dizia respeito a temas tradicionais como amor. Diziam que Lemmy transara com mais de mil mulheres. Ele contextualizava, e dizia que, fazendo as contas, não era tanto assim (uma vida inteira dedicada ao rock, ausência de compromisso, e mais de 70 anos de idade). Mas ele também cantava e falava sobre amor. Mas não era do jeito tradicional. Nem tentarei aqui dizer o que ele achava sobre isso. Irei comentar brevemente algumas de suas maiores músicas sobre o tema. O que o ladeavam.

Antes disso, deixem-me lhes dizer que Lemmy comenta, em sua biografia, que logo será lançada em português por aqui, que realmente amou para valer UMA garota. Ela era negra, estavam eles nos anos 70, ela tambem menor de idade, foi fazer strip no Líbano, voltou drogada por heroína e morreu numa banheira. Ele disse ter ficado três dias sentado em frente ao corpo e não ter ido ao enterro. Digo-lhes também que isso para ele foi determinante. Mas também é preciso salientar que ele, já sofrendo bastante com a idade, dizia nos últimos anos que talvez ela nem tivesse sido A mulher da vida dele. Nunca iremos saber.

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I Don't Believe a Word

Todos nós já passamos por isso. Um momento, em alguma relação, em que começamos a descrer de tudo o que nossa parceira nos diz. Em que, mal ela parece levantar a voz, já sentimos aquele bafo de mentira. Em que parecemos afundar nesse afã de tentar achar algo de bom nisso que ouvimos, e em que finalmente queremos que a pessoa se cale. Então, I Don't Believe a Word.

Esta faixa de Overnight Sensation é uma das mais soturnas que eu conheço da banda (existem outras piores, mas mais existencialistas). O baixo mal parece ser tocado, na verdade. Ele escorrega pelas cordas e dá o tom de toda a faixa, acompanhada de forma eficiente pelo Wanker (Philip Campbell). A pegada bateria é constante e sem destaque. Mas a letra parece nos levar num beco sem saída. Já de cara, como uma porrada no queixo, Lemmy simplesmente diz, não fale comigo, eu não acredito em uma palavra do que você diz. Isso é forte demais, se formos pensar bem, caso a gente diga algo a alguém (ainda) importante para nós. É xeque-mate antes da partida começar. É ippon antes dos karatecas trocarem alguns socos. É cair da cama antes de acordar.

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E vejam bem tudo o que segue. Não tente me fazer sentir bem. Todo o amor do mundo não poderá salvar minha alma agora à noite (desculpem a tradução). Não seja meu amigo, eu não sou idiota. Não fale de coisas que não conseguimos ver. E por aí vai. Só porrada, ninguém em sã consciência, que ainda diga gostar de alguém consegue sair pela rua andando nos próprios pés. Isso simplesmente mata a alma da outra pessoa. E olha que estamos apenas nas primeiras estrofes.

Mas não vou aqui traduzir algo que vocês podem entender até melhor do que eu. Vou tentar mostrar-lhes, agora, com outros recursos, por que esta música simplesmente significa tirar das tripas uma raiva tão grande que pode até matar. E que não mata não sei como.

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Passadas as primeiras estrofes Lemmy grita, como sempre, mas de forma estranha, com um grito meio morto, frases em que parecemos ver tudo cair. O diabo ri, Deus dá de costas, não há nada a perder, nada a dizer, o céu se torna negro, o mar seca, nada é nosso nem daquele a quem a gente se dirige. É uma espécie de falecimento geral da alma. Uma espécie de fim. E isso dito aos gritos para os céus. É absurdo gritar isso, com alma, num show de rock. Eu nunca fiz isso, se querem saber - embora faça em faixas que ainda irei mostrar. É forte demais. E olha que a gente está apenas começando.

A questão é que, nesta música, o efeito de variar aquilo que é entre duas pessoas ou almas e os gritos que trazem para nós todo o efeito da eternidade destróem, em si, qualquer capacidade que possamos ter ainda de acreditar. Vejam, por exemplo, em seguida, nas estrofes menos gritadas.

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Não olhe para mim, seus olhos são frios e duros; não espere que eu me vire para você; não há aflição no mundo suficiente para te confortar; não minta para mim; não fale de amor, pois eu consigo sentir as pessoas que me roubaram me usando bem neste exato momento. É uma discussão entre pessoas que se pegam, se maltratam, e estão se matando na frente de outras. E em meio às quais nada mais parece existir. Passei por isso. E olhem, quase surtei.

Mas a questão maior da faixa é que, encarando-a com a seriedade que parece ter, notamos até que ponto pode ir a desilusão e a vontade de machucar entre as pessoas. Porque esta música é um míssil dirigido diretamente ao coração da pessoa que nos amávamos e ao nosso, também. Porque gritar ao mundo tal desilusão, tamanha dor, tamanha destruição, é algo que pode nos fazer realmente enlouquecer. Caso tenhamos amado de verdade, claro.

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Um excurso pessoal é que quando começava a conhecer o Motörhead comecei a tentar me envolver com uma menina. E ela traiu de vez minha confiança quando não podia. Eu quase pirei, e como vingança lhe traduzi esta música. Ela chorou a cântaros e foi se esconder. Eu nunca consegui me perdoar do que fiz, mas ao mesmo tempo minha dor era tão grande que eu precisava jogá-la de alguma forma para fora. Foi por meio desta canção que eu, digamos, sobrevivi.

Notem também um detalhe bastante sutil mas ao mesmo tempo fundamental a partir da metade da faixa. Há um coro por detrás da guitarra e do baixo que canta "Silêncio". Claro, seria muito diferente dizer "Cale-se". Não, não é APENAS isso. É silêncio porque o que está sendo dito ultrapassa em muito a nossa relação. É algo de que o mundo precisa ser testemunha. É algo que atinge algo mais, quem sabe atinja até Deus. Por isso minha leitura do silêncio. Silêncio tem um poder muito maior do que simplesmente mandar alguém calar a boca. "Silêncio" nesse sentido é mortal. É como dizer "você agora não PODE NEM DEVE falar". Aqui, é coro. Percebam, os especialistas, que a função do coro na história é justamente essa: dizer a verdade. Toda ela.

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O resto, se é que pode haver resto na atual condição, é só queda, infinita, rumo a lugar algum. Leiam vocês mesmos e tentem sacar o drama. Lemmy não deixa por menos. Quer matar a alma da garota. Só pode. E a própria, de roldão. A música acaba num ritmo e com acordes que nos fazem entrever o inferno. Sendo que ele não se cansa de gritar que não acredita em uma palavra, até quase o fim, com um pequeno solo do próprio baixo que nos convence da ausência absoluta de esperança. Não há quem resista a isso. Eu mesmo tenho medo de cantar essa música. Ou de passar por algo que me leve a isso.

One More Fucking Time

Para contrabalançar tanto desespero, peguemos agora esta balada, com o baixo do Lemmy sendo tocado num registro mais suave, mas ainda sujo, e com sua voz quase sendo cantada - praticamente todo o tempo. É uma balada de decepção, mas ainda de algum lirismo (contido), em que ele comunica a ela que... a culpa foi novamente dele. Pois os versos são: você descobre a minha culpa mais uma fucking vez (não sei como traduzir fucking com este contexto).

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Vemos aqui uma espécie de reflexão. Vemos as coisas indo e vindo, as coisas que aparecem a quem espera, ou que surgem como força de destino, tudo um estado mental, e nada sendo realmente nosso, a não ser, quem sabe, o momento de dizer adeus. Tudo de um jeito aparentemente calmo e conformado, de alguém que agora parece ver a vida de longe, mas que nota que... a culpa sempre foi dele.

A ausência de esperança aqui, vemos, radica em outro lugar. Radica em que nada parece convencer-nos de que as coisas eram como foram, de que tínhamos algo que achávamos ter, de que o tempo que aproveitamos era mesmo nosso, e de que sabíamos afinal o que significavam as coisas que víamos. Como se tudo tivesse sido um sonho. Do qual só restasse uma certeza: que a culpa foi nossa.

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Não à toa, como excurso pessoal, eu canto essa música lembrando de todos os meus relacionamentos fracassados, em que eu meio que me sentia sendo jogado de um lado para o outro, e no qual eu parecia não fazer nada certo, e levar a culpa por tudo... sempre uma vez mais. Não que eu fosse inocente nisso tudo, é certo. Mas a sensação que ficou de tudo o que passei foi bem essa, e talvez seja por isso que me sinto tão bem ao cantar a faixa.

Mas se fosse só isso não seria uma música com a letra do Lemmy. O cara sempre deixou claro que ele tinha a sua vez. As palavras a dizer, e talvez as últimas. E elas estão após 2/3 da música, quando, contrariando todo o clima anterior, ele acusa. Se eu tivesse sido o homem mau que você diz, você poderia ter visto a bondade em mim, você poderia ter visto o outro, o homem bom que eu poderia ter sido. Mas dado que eu sou um homem bom, nada mais importa, e eu não poderia ter feito nada. Claro que esse trecho é cantado aos gritos, como eu mesmo faço, mas apenas uma vez, para não me machucar.

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O fim da música tinha também que levar-nos bastante fundo no inferno da sensação que tudo isto faz crer. E isso é feito aos gritos, claro, cantando que, claro, vai fundo, diz que eu sou culpado mais uma fucking vez, diversas vezes, até terminar num grito duplo (com acompanhamento), para deixar bem clara a mensagem. É então quando o solo final do Wanker domina a cena, levando essa dupla acusação (dela e dele), aos gritos, aos confins do universo (exagerei, mas tudo bem). Lemmy, claro, nunca gostou de solos extensos, mas aqui, como em Metropolis, que tem outra pegada, o punheteiro tem toda a liberdade para ir além. Merece.

Lost in the Ozone

Termino com o maior clássico do desespero que eu conheço. Tanto que sei que perguntaram ao próprio Lemmy se ele se sentia desse jeito mesmo quando compôs. Nem sei o que ele respondeu. Não importa.

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A versão que eu coloco da música aqui é de um show que eu considero fundamental para entender a banda, que pegou o título Everything Louder Than Everyone Else. Por que neste CD? Porque nele, o barulho e a limpeza do desespero ficam mais claros.

A faixa é bastante lenta, e o tom é dado novamente pelo baixo. A narrativa é clara. Algo ou alguém está distante de tudo e de todos, perdido, sem qualquer esperança. Só isso, simplesmente isso. O fim de tudo é dado no solo matador de Lemmy, que parece gritar por socorro, um socorro que ele parece não merecer e que não irá chegar. O fim. Não sei o porquê do título, mas sei apenas que não há mais nada a dizer.

Há? Digam-me vocês. Até mais.

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Sobre Rodrigo Contrera

Rodrigo Contrera, 48 anos, separado, é jornalista, estudioso de política, Filosofia, rock e religião, sendo formado em Jornalismo, Filosofia e com pós (sem defesa de tese) em Ciência Política. Nasceu no Chile, viu o golpe de 1973, começou a gostar realmente de rock e de heavy metal com o Iron Maiden, e hoje tem um gosto bastante eclético e mutante. Gosta mais de ouvir do que de falar, mas escreve muito - para se comunicar. A maioria dos seus textos no Whiplash são convites disfarçados para ler as histórias de outros fãs, assim como para ter acesso a viagens internas nesse universo chamado rock. Gosta muito ainda do Iron Maiden, mas suas preferências são o rock instrumental, o Motörhead, e coisas velhas-novas. Tem autorização do filho do Lemmy para "tocar" uma peça com base em sua autobiografia, e está aos poucos levando o projeto adiante.
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