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Beat e fuzzed-out: a Jovem Guarda ácida

Por Giancarlo D'Anello
Fonte: Medium
Postado em 04 de janeiro de 2019

Mais do que um movimento musical, a Jovem Guarda foi um movimento de caráter cultural, do ponto de vista mais amplo do termo.

Popularizou junto aos brasileiros o hábito de consumir música eletrificada composta por guitarra, órgão Hammond, bateria e baixo elétrico, inaugurando uma nova maneira de se relacionar com a música popular no país, bem diferente das ondas que a precederam: estas mais calcadas nas orquestras de câmara que marcaram o teatro rebolado nos anos 30, a famosa era do rádio nos anos 40 e nos instrumentos acústicos que caracterizaram a bossa nova, o choro e o samba.

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Diferentemente das ondas das décadas anteriores, a Jovem Guarda introduziu no universo sonoro brasileiro referências e instrumentos que antes, se não eram inexistentes, certamente não eram protagonistas.

Até mesmo a primeira geração de rock no Brasil, no final dos anos 50, não chegou a atingir o tipo de sonoridade que caracterizou os primórdios do rockabilly americano, sendo mais calcada no estilo "civilizado" de PAT BOONE e PAUL ANKA, e não na selvageria de ELVIS, CHUCK BERRY e JERRY LEE LEWIS. TONY e CELLY CAMPELLO, BABY SANTIAGO, DEMÉTRIUS, WILSON MIRANDA, BETINHO E SEU CONJUNTO, entre outros, com certeza abriram muitas portas nos lançamentos dos primeiros compactos rockeiros brasileiros, mas ainda assim não atingiram a essência do que viria a ser conhecido como música garageira.

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Havia no Brasil — e ainda há — uma resistência cultural ao volume elétrico que o rock n’ roll inaugurou na música popular americana e que foi muito bem aceito e transformado nas cenas locais de vários países. A reação da plateia nos festivais da canção ao longo da década de 60 e, particularmente, a infame marcha contra a guitarra elétrica em 1967, mostram um pouco do insólito universo cultural brasileiro frente a este tipo de atitude musical.

Por esta e outras razões, a Jovem Guarda, ao longo do tempo, e mesmo depois da sua consagração popular junto às massas com milhões de discos vendidos e centenas de filmes de sucesso, foi subvalorizada pela memória dos "especialistas" e da maioria dos jornalistas culturais brasileiros que a citavam, quando muito, como mera germinadora de movimentos "mais criativos e complexos", como a Tropicália e a música popular setentista, diminuindo ou até mesmo esvaziando a importância que o movimento teve para com a música brasileira.

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Geralmente caracterizada como mera cópia do iê-iê-iê britânico, inocente demais e sem densidade, a Jovem Guarda não teve, durante muito tempo, o devido reconhecimento da crítica. Muito mais de como é apresentado, o movimento legou também, mesmo durante seus últimos anos e após eles, produções que não se enquadram exatamente nas ondas rememoradas da época mas que são extraordinariamente originais. Fortes influências da psicodelia, da soul music, do funk, do beat e do uso do pedal fuzz na guitarra — que pontuou o início do uso da distorção — marcaram essas produções, e proporcionaram, desta vez à margem do mainstream, conteúdo criativo nunca antes visto no Brasil.

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JERRY ADRIANI lançou em 1970 o álbum "Jerry", que contou com a colaboração de RAUL SEIXAS na produção. Guitarras fuzz, linhas de soul no baixo e nos metais mostram um lado ainda não muito conhecido na música popular.

Também em 1970, WANDERLEY CARDOSO lançou o álbum "Renascer" pela gravadora Copacabana, com produção de PAULO ROCCO. Destaque para a música "Vou embora vou sumir", que abre o disco.

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VANUSA em 1973 lançou o álbum homônio que contém a música "What to do", que muitos dizem ter sido plagiado pelo BLACK SABBATH na música "Sabbath Bloody Sabbath", 1 ano depois. A questão, que parece absurda, talvez tenha algum fundo de verdade, pois na época TONY IOMNI, que estava sofrendo de uma profunda crise criativa como ele mesmo apontou em sua biografia, pediu para que fornecedores lhe trouxessem álbuns de cantores obscuros de outros países, para que pudesse se inspirar novamente. Verdade ou não, o fato é que os riffs se assemelham muito, e que Vanusa lançou a música bem antes da banda inglesa.

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DENY E DINO, famosos pelo hit "Coruja", lançaram um compacto duplo em 1968 com uma forte sonoridade garageira. A música "Já posso imaginar" mostra bem a confluência das guitarras fuzz e da soul music psicodélica.

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WANDERLÉA em 1972 lança o sensacional álbum "…Maravilhosa", estreando na Polydor. Explorando novos gêneros que a afastaram do estereótipo da Ternurinha, gravou um medley muito interessante do "Back in Bahia", do GILBERTO GIL, e da versão "Banho de Lua", da CELLY CAMPELLO, que marcou a primeira geração rockeira brasileira.

LENO, conhecido por integrar a dupla LENO E LILIAN, lançou o excelente "Meu nome é Gileno" em 1976, com fortes influências do blues e do hard rock. Destaque para a terceira música do álbum, o "Em busca do Sol".

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SILVINHA lançou em 1971 o icônico álbum "Silvinha", marcado por vários experimentalismos. Um deles é na música "Paraíba", uma mescla de rock com música regional cantada em tom extremamente alto e com riffs do LANNY GORDIN, um dos maiores guitarristas brasileiros.

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EDUARDO ARAÚJO lançou um interessante compacto em 1968 pela ODEON que continha como lado B a "Nem sim nem não", um rockão capitaneado de novo por LANNY GORDIN na guitarra e pela orquestra do Peruzzi. A orquestra do maestro Peruzzi comandava a maioria das gravações da ODEON da época, sendo uma das mais requisitadas entre os artistas da Jovem Guarda. Podemos ouvir Eduardo gritando "Lanny" e "Peruzzi" antes dos solos, num clima bem garageiro e relaxado.

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ERASMO CARLOS lança em 1976 o célebre "A Banda dos Contentes", que marcou seu ápice no amadurecimento musical. Entre as músicas que compunham o disco está "Baby", um rock grooveado e crescente com uma ácida letra que zombava indiretamente da militância esquerdista da época.

ROBERTO CARLOS lançou em 1967 um de seus maiores álbuns de sucesso, a trilha sonora do filme em que também atua, o "Roberto Carlos em Ritmo de Aventura". A música "Você não serve pra mim" foi uma das primeiras no Brasil a utilizar o fuzz na guitarra de modo ostensivo e contínuo. Um clássico inovador.

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A popular banda THE FEVERS lançou em 1970 um ótimo ábum que continha a nervosa "Você morreu pra mim", composta por Miguel, Almir Bezerra e Rossini Pinto, este último um dos compositores mais competentes e requisitados da Jovem Guarda.

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RENATO E SEUS BLUE CAPS lançam em 1970 um disco homônio que é considerado o melhor deles por muitos. "Só faço com você" é uma música com muitos solos, guitarras fuzz, linha de baixo bem grooveada e um teclado hammond permanente e nervoso, mostrando uma clara influência do THE WHO, THE KINKS e de outras bandas britânicas de garagem.

Em 1968 OS BEATNIKS lançam pela Mocambo, selo da gravadora Rozenblit de Recife, um compacto duplo que marcou o rock de garagem no Brasil. Banda de acompanhamento de muitos artistas da Jovem Guarda, lançaram de forma independente apenas 3 compactos. Destaque para a "Alligator".

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OS CAÇULAS também merecem ser lembrados, com o hino psicodélico "A Moça do Karmann Ghia Vermelho", lançado no álbum homônio de 1969.

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Em 1968 OS INCRÍVEIS lançaram um álbum com uma forte influência da soul music. A audição remete a um ambiente relaxado de gravação, com abertura para traquinagens e improvisações. Forte influência das produções do Stax Studio de Memphis, que legaram algumas das melhores gravações do soul americano. Destaque para o cover de EDDIE FLOYD, "Knock on Wood".

REGINALDO ROSSI, que começou sua carreira dentro da Jovem Guarda gravando rocks antes de se consagrar no brega, lançou em 1972 o álbum "Nos teus Braços", que possuía uma forte influência da soul music também. A música "Pare Pare" é um funkeado com o uso contínuo da guitarra no wah-wah e com linhas bem grooveadas.

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AGNALDO RAYOL, que também participou da Jovem Guarda mesmo tendo se consagrado no operístico e no romântico, lançou em 1972 um álbum com arranjos do extraordinário DANIEL SALINAS que continha o rock rural "Do Bicho ao Lixo", escrita por seu irmão REYNALDO RAYOL e N. BOURGET. Os solos da viola caipira se misturam com o grooveado do baixo e com a orquestração de Salinas. Beira à psicodelia.

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Assim como estes, muitos outros artistas que integraram a Jovem Guarda, alguns mais outros menos conhecidos, produziram e lançaram músicas completamente originais e fora de qualquer rotulação na época, distantes tanto do estereótipo do movimento em seu auge como das canções de protesto e da Tropicália, enquanto proposta musical clara. Curiosamente eram produções à margem do mainstream, vindas de artistas que integraram até pouco tempo antes um movimento massificado de forte apelo comercial.

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Muitas dessas músicas eram lançadas sem uma resposta muito significativa do mercado e da crítica, e caíram no esquecimento logo em seguida. Algumas serviram de impulso para um pulo comercial maior ou mudança de gênero musical do artista, e outras apenas se tornaram pérolas perdidas no tempo.

De qualquer forma, olhar para esse lado muitas vezes desconhecido da Jovem Guarda e dos artistas que a integraram é vislumbrar uma produção original, rica, underground e violentamente criativa, distante de qualquer tipo de rotulação e sem rabo preso ideológico.

Olhar para isto é constatar que a história da música popular brasileira dos anos 60 e 70 foi muito além do reducionismo conveniente para a leitura encomendada do jornalismo cultural no Brasil, que enxergava disputas primárias entre 2 ou 3 correntes, como entre "música engajada" e "música alienada", música popular conservadora e música experimental, entre outros binarismos toscos, ignorando uma dimensão muito mais original e rica.

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Sobre Giancarlo D'Anello

Giancarlo D'Anello é baixista desde os 14 anos de idade, produtor musical e é formado pela Universidade de São Paulo (USP). Além do envolvimento com a música desde sempre, é leitor voraz de literatura e jornalismo cultural. Escreve contos de horror e sobre os aspectos mais relegados do rock n' roll. Fã inveterado de boxe, Elvis Presley, Stephen King, cevada e Harley Davidson, não necessariamente nesta ordem. Atualmente gerencia a gravadora independente Central Park Records e lidera o projeto de stoner instrumental Giorgio La Rocca em Bologna (Itália).
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